terça-feira, junho 17, 2008

a noite


A noite veste vários tons de negro, cobrindo e descobrindo a pele dos passeios, da rua e dos muros. Insinua-se no rumor da urbe e afaga os fantasmas que a atravessam apressados, deixando para trás apenas um rastro de penumbras difusas sobre o alcatrão. A noite tece-se em madrugadas, embalando-se no rumor da cidade e no lanço dos peões que a navegam por entre as sombras.

terça-feira, abril 22, 2008

vala


Jazem hirtos os corpos decepados das árvores de outrora. Artificialmente prostrados num regimento de carcaças. As peles secas que se quebram sob o peso do sol, enrugando-se em linhas de uma sina sem testemunhas nem memória. Sina invadida por arbustos pacientes e ervas daninhas indiferentes que aos poucos, lenta mas firmemente, cobrem, com um outro silêncio mais, a vala de árvores decapitadas.

quinta-feira, abril 17, 2008

desvanecer


Mergulha a tarde num silêncio profundo concentrando-se numa tela de luz onde a sombra de uma planta em flor se ergue em espiral. Por perto uma salva no bordo da janela e cortinas despreocupadamente entreabertas a esconderem-se para os lados onde toda a treva da sala rumina a tarde silenciosa. As silhuetas ténues das paredes desvanecem um pouco mais.

quarta-feira, abril 09, 2008

olhar


Sente-se o peso do céu granulado mergulhado no escuro das águas. Perante ti e a evidência de um limite físico  ergue-se a pergunta de sempre: e agora?
A outra margem, cortada ao longe pela mesma água turva e opaca, está fora do teu alcance e as embarcações possíveis escaparam-se para lá dos teus olhos devido ao teu permanente atraso. Recupera o tempo com os pés assentes nesta madeira manchada, recupera-o na espera que tens pela frente, recupera-o em contemplação, em quietude e em silêncio, porque só assim, nessa tranquila atenção se consegue conjugar o verbo olhar em todos os tempos, modos e pessoas.

terça-feira, abril 08, 2008

céus


Existem certos silêncios de luz que se vão derramando por tardes longas. No céu descoberto por entre o algodão das nuvens, esses silêncios escoam-se sobre o lago, pingando em folhas de um outono ainda jovem. A ilha repousa sobre e sob os céus, o de cima e o da água que o reflecte um pouco mais baço e trémulo. Do cais ninguém espreita nem ninguém espera e, ao fundo, o horizonte escuro de outras serras e colinas envolve tudo isto num laço largo, separando os céus, as folhas e as nuvens.

quinta-feira, abril 03, 2008

a porta


Os mesmos traços gastos no rosto da cidade escura. As mesmas rugas cansadas, as mesmas rubricas de poetas urbanos, a mesma simulação de lixo aqui e ali e sempre o mesmo início de lepra nas paredes, muros, fachadas e portas. Mas também o mesmo orgulho de pedra que se mantém de pé, erguendo-se em colunas e paralelepípedos seguros de si. A porta que dá para a rua, fielmente cerrada, protegendo quem lá dentro encontrou o seu ninho, a sua paz e serenidade. Talvez o seu último reduto. Ou, em último caso, uma ode ao simples abandono ou rendição.

segunda-feira, março 17, 2008

rede


Colher uma imagem na rede e emaranhá-la numa simetria tosca sobre o campo. As marcas no solo tanto são rugas de tempo e intempéries como cicatrizes de golpes mais duros. Guarda no entanto ainda a linha branca do limite das regras, de um lado está-se dentro e tudo continua, do outro está-se fora e das duas uma: ou se recomeça tudo de novo ou o ponto final é ganho e nada resta senão partir. Mas neste início de ruina há um certo orgulho no poste que se ergue, esfarelado na tinta mas ainda de pé, segurando a rede e a sombra que tudo emaranha.

segunda-feira, março 10, 2008

detalhe


A um canto de um quadro, o detalhe de uma garrafa vazia. À volta um cenário abandonado com palavras soltas e marcas de um sarampo sujo no pedaço de parede vertical. Um gradeamento enferrujado corta às fatias um breu vindo de dentro das janelas. Fazem-se ouvir então as tais palavras soltas: morto, party, trilogia do cão e uma data para relembrar-nos que o tempo existe e vai roendo tudo e todos. O detalhe torna-se central, tudo o resto quase não importa já, é apenas decoração aleatória. A garrafa é.

quarta-feira, março 05, 2008

leitura divina


Lá do alto, um deus nocturno vai-nos lendo, usando a lua como candeeiro de mesinha de cabeceira e o céu como almofada. Almofada coberta por uma fronha nublada. Lê-nos as fontes, essas antigas metáforas, e lê-nos as estátuas e as grandes praças iluminadas. Lê-nos os edifícios ladeando as avenidas e lê-nos a nós errando pela noite. E deixar-se-á embalar pelo gorgolejar da água até adormecer de vez quando o dia chegar e se pousar sobre livro que vamos sendo sob o sol da manhã.

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

pintutas urbestres


Multiplicam-se os poetas urbanos pela calada da noite. Esfomeados por deixar viva a sua marca, reclamando o trono da autoria, o halo da existência mesmo que marginal e pseudónima. Sangram os pilares da cidade encavalitando-se uns nos outros, espalhando palimpsestos pelas ruas já escritas por outros antes deles. E pelas vielas manchadas de paralelos, procuram um lampião que lhes ilumine o gesto em silêncio. Pela calada da noite uma outra poesia ergue-se pela urbe.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

fachada


Quando te acusam de seres o que és, somente uma aparência, esquecem-se de mencionar os golpes que te lançaram e lançam desde sempre. Sejam eles assinaturas de poetas urbanos, sejam anúncios em papel que se esfarela rapidamente mas nunca totalmente, seja o corroer das chuvas e ventos que te envelhecem a pele em crostas de gesso e tinta. Esquecem-se que por ti passam, sem se aperceberem sequer do labirinto em calçada portuguesa que se insinua a teus pés. E esquecem-se de olhar, porque se olhassem viriam que esse labirinto é a espuma das ondas de um mar cinzento vindo da rua que se espraia silenciosamente contra ti. Esquecem-se que uma fachada é algo mais que uma aparência.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

trapos e remendos





Percorres as paredes da cidade com o tacto dos olhos, esse sentido que se desenha por dentro, de uma só vez, tanto em sentimento de verdade como de irreal. Recorres então à intuição que te ensinou a imaginação e os sonhos, e pensas em remendos e trapos semeados pela urbe. Como se a cidade e os seus muros fossem velhas calças de ganga rotas ou casacos gastos e coçados. Ou ainda, como se as esquinas fossem a lombada de uma velha caderneta de cromos ou de um poeirento álbum de família que alguém, pela socapa da noite fosse remendando.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

estátua


Fazemos como os deuses e moldamos estátuas à nossa imagem. Algumas reflectem graciosidade e silêncio, leves poses de preguiça ou vaidade. Um busto coberto pelas sombras do bronze e o seu respirar quase imperceptível inundam o espaço à volta numa calma onírica. Mas o olhar, esse, não se esculpe nunca como os deuses o fizeram por nós. Por isso as estátuas serão sempre perfeitas, sempre estagnadas no tempo, ápices, instantes, sem aquele estrelar tão humano na gema dos olhos.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

vidro


O vidro tem a particularidade de ser transparente e reflectivo. Por vezes ao mesmo tempo, por vezes em momentos diferentes. Quando usado em jaulas tipo lego gigante, multiplica-se infinitamente em reflexos e simetrias, fazendo crer que existe um eco do edifício pelo horizonte fora. Arrumadinhas dentro das suas jaulas, suspensas pelo milagre da engenharia em pilares finos que perfuram chãos e tectos, sustendo tudo isso para uma ilusão de ninho, as pessoas vão vivendo algures longe das suas janelas.

terça-feira, janeiro 29, 2008

caminho


És escoltado pelos troncos escuros das árvores. Se, por um lado, te convidam e te oferecem as sombras embalando-te numa brisa fresca de início de tarde, por outro lado, sugam-te como um remoinho escondido por entre a ramagem, as folhas, o solo e os arbustos, actuando em ti como a força da gravidade, subtil mas firmemente, numa espiral onírica, como um flirt ou desmaio.
Existe algo de hipnótico nestes caminhos que entram pelas florestas e pelos bosques, algo de feérico, como se lá dentro o mundo dos druidas e feiticeiros nos esperasse, e todos os mistérios fossem, não desvendados, mas revelados à nossa frente, moldados em seus enigmas indecifráveis.

terça-feira, janeiro 22, 2008

rumor


Há um rumor de cidade apressada sob a chuva. A luz baça do dia cinzento treme pelo solo molhado vinda do miradouro, esgueirando-se pelo banco e desviando-se das árvores altas, espreguiçando-se até nós. As sombras tomaram conta dos corpos, vestindo-os com o anonimato que lhes molda as formas. Quase que se ouve o vento passar pelos ramos e pelas folhas, fazendo com que coem parte do céu, estrelando-o a espaços pela penumbra da ramagem.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

no pátio


Escoando-se em sombras, a viela desagua para um pátio interior de chão desnivelado e de paredes sujas. O pescoço de um cadeeiro antigo estica-se sob a janela fechada como que a tentar espreitar por entre os vidros gradeados e baços. Pelos muros distinguem-se as veias dos canos e as nódoas negras de tempo e de chuvas passadas.
No limiar do lanço das escadas esperas que alguém desça e aguardas protegendo-te da chuva miúda que se adivinha.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

o sorriso


Dizem os entendidos que o sorriso de La Gioconda representa aquele exacto momento imediatamente anterior ao seu desvanecer completo. No entanto, tu crês o contrário, crês que ele é apenas o início de um sorriso total e aberto ao mundo e cuja sombra de uma árvore ao alto não ofusca nem limita. Poderá ser encenado, falso, mentiroso. Mas isso são coisas que só as mulheres conhecem e que só os homens tão atabalhoadamente desconhecem.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

uma intermitência


Um gesto desenhado ao alto perante o semáforo arqueado. A mão dela, delicada e precisa, segura um balão de sombra, prestes a soltá-lo pelo toldo acima para que se junte ao cinzento do céu. Balão que contém o rumor do tráfego em baixo, cadenciado pelas intermitências do sinal supostamente luminoso mas baço, sem cor, trigueiro.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

nas escadas


Uns sobem outros descem, alguns ainda estagnam-se, absortos num degrau intermédio de qualquer rés-do-chão e um improvável topo. Repousam os pés sobre a pedra fustigada pelas bexigas do tempo e um acne velho toldado por sombras. Sombras essas, desenhadas pela luz que cai do alto, metáfora perfeita de um suposto céu (em cima) e de um suposto inferno (em baixo).

o cais


Abrigas-te nas sombras e espreitas o cais. Tudo numa tarde amena e silenciosa. Cheiras serenidade na luz, um perfume leve transporta-te pelo lago liso no pequeno barco que se adivinha por entre os arbustos. Pensas ou namoras, diluis-te ou adormeces. Estas tardes, sabe-lo muito bem, não têm nunca um fim, percorrem-te a ideia até fechares os olhos da alma pela última vez. Poderá ser que um dia partas de um cais assim.

um deserto para dois


Um deserto para dois que aguarda corpos que o ocupem. Deserto em silêncio e minimalista. Deserto que se oferece, que convida, que se estende em toalhas, desbotadas em borboto, perfeitamente postas por cima de mesas vazias. Deserto rodeado de sombras às quais resiste com paciência. Deserto aos pares, repetindo-se, ecoando-se, igual nos gestos e nos sonhos. Alguém virá com certeza. Tem de vir.

os livros mudos


Um pequeno lago de luzes trémulas tolda-me a vista como quando acordo de um sono pesado e a areia nebulada da manhã ainda se espreguiça nos olhos. Recordo a biblioteca de babel do Borges e os tomos, entalados em estantes, contendo todo o possível e todo o imaginário, todas as mentiras e a única verdade. As cadeiras alinhadas de nada me servem hoje. Prefiro baixar-me e prostrar-me como que para melhor escutar os livros mudos.

cronopófago


O tempo que se gasta a ele mesmo e que esconde os restos nos cantos sujos dos sótãos. Cronopófago cujos cadáveres com horas certas no obituário não têm memória nem sopros a ditar-lhes o presente. Eles são o momento exacto que se eterniza, são os testemunhos de um instante concreto que se finou mas cuja cicatriz é real. Sabem-se estas coisas pela luz que sangraram e cujas gotas ainda brilham e jazem no solo.

janela


Furtivo é o olhar que se lança por uma janela em busca da frescura de um jardim. Ou então, escolhe-se a adivinhação de uma sombra desenhada pela poalha que o sol vai derramando no vidro recortado.
Mas se formos ainda mais longe na metáfora (na verdade, portanto), e deixarmos o olhar livre, vemos degraus que nos convidam a sair. Pela janela. Em forma de caixão. Luminoso.

segunda-feira, outubro 02, 2006

erguendo sombras

Erguemos sombras cada vez maiores na cidade por entre árvores e semáforos e ramos e prédios. Mundo sobre mundo, qual babel amontoada em blocos de blocos e mais blocos. Aos poucos escondemos o céu, atirando-o ainda para mais alto, afastando-o irremediavelmente de nós. Uma réstia celeste a um canto ainda, mas mesmo essa revela-se baça, cinzenta e ameaçada.

abandono

Ecos de um outro tempo. Tempo onde o mundo se decidia em bancos de jardim, por entre os conselhos das pombas aos velhos, por entre os namorados deitados sobre a relva, por entre crianças e a correria atrás de uma bola. Um desalento paira no esquecimento destes bancos. Pequenos cantos de humanidade que se abandonam, cidades que se perdem aos poucos, jardim a jardim, banco a banco, até não restarem senão vagas recordações poeirentas.

sexta-feira, março 03, 2006

a viga




Há que suster o céu para ele não ruir sobre nós. Monstro de ferro erguido como uma viga por sobre a goela larga do rio, amparando o cinzento das nuvens num esforço digno de Hércules. Um qualquer poeta urbano plagiou a obra, assinando-a com a sua poesia estranha e abstracta. Um vulto feito sombra ladeia a margem e, ao longe, um abraço divino feito de betão testemunha tudo isto espreitando a cidade que se advinha por trás de nós.

a última morada


Um esqueleto de arame e ferrugem repousa à porta de um rio. As chuvas roeram-lhe o ferro e o brilho, descascaram-no até à carcaça. E o céu de chumbo ameaça continuar a tortura. As ondas vão e vêm, vincando a película da água escurecida como um lençol velho, agitando os farrapos que ainda resistem, prostrados, cabisbaixos, negros de um luto que ninguém fez por eles. Ao longe estedem-se as águas até à outra margem. Esta é a úlrima morada, rendida ao tempo que não passa mais. Eterniza-se.

a estrada


A estrada aparece em esforço. Toda ela esculpida no tempo, imóvel num presente que tentamos agarrar. Mas a estrada tem sobre nós uma eternidade de avanço. Porque ela é já a cicatriz do caminho que vamos fazer. E no esforço que nela se revela, revela-se também à sua volta, em gritos de seiva feito troncos e ramos, espreguiçando se no alto por folhas escuras e pedaços de sombra erguidos ao sol. E tudo isso em silêncio profundo numa tarde que rebenta do chão ao céu.